terça-feira, 25 de março de 2008

BARULHO CONTRACEPTIVO

Sabadão, quinze pras onze. O espetáculo é amedrontador. Duas mil pessoas se acotovelam do lado de fora na esperança de uma entrada para as pregações nada ortodoxas de Tatiana dos Santos Lourenço, ou se preferir só Tati, a mulher que quebra barracos. Uma pergunta feita por um amigo me toma de assalto. "Até quando poderemos ser chamados jovens?” A resposta parece estar na minha frente. Ali seria o fim. É evidente que não faço parte do espetáculo. Sou como Richard Dreyfuss em Contatos Imediatos do Terceiro Grau. Jeans colado, camiseta dos Stones, adidas. Sim, certamente não haverá amanhã. Mas, desistir, não mesmo.

Com a demora no andamento da fila, o jeito é alternar sistematicamente minhas pernas já doloridas no apoio de um corpo cansado. Tati é o pior do mainstream brasuca, o que sem dúvida a torna digna de apreciação. Freak Show funkeiro pra periferia pirar e boyzinho curioso travar de medo. Decido prosseguir, contrariando meus próprios prognósticos. O movimento é impressionante. Os ônibus cospem, em intervalos de cinco minutos uma turba de garotos e garotas a fim de um pouco de diversão em suas vidas feias. Estou quase lá. Conto quarenta e seis cabeças à minha frente. Calculo o tempo, dividindo-as pelos dois guichês que trabalham freneticamente. Dez pratas pelo grotesco. Não reclamo. Meu led está aceso acusando o foda-se ligado.

Ao entrar levo um susto. Penso numa dessas estimativas policiais para grandes eventos: seis mil pessoas; mais que isso. Todos num galpão onde mil já ficariam claustrofobicamente confinados. Não há escolha entre ir e vir. O que se tem a fazer é acalmar os nervos sem afrouxar os músculos. Lançar-se na deriva por entre regatas de onde brotam sovacos cabeludos e cabelos com litros de creme de alisamento, parece ser a melhor opção. A tensão da espera acirra os ânimos. Dois meninos disputam as ancas de uma menina através de um jogo de ombradas. Tento pensar rapidamente numa oração. Tsc, tsc. Nunca me lembro das especificações. Santo das causas impossíveis, Santo da última hora, dos devedores, dos idiotas que não deveriam estar em lugar como aquele... Clamo a Deus, afinal.

O clima esquenta quando o DJ começa o que ele chama maratona funk. Uma sucessão não planejada de músicas gritadas por algum moleque de alguma comunidade onde, um dia, a cidade já recebeu o adjetivo de Maravilhosa. As bases são de EBM, só que remexidas de um modo primário, quase sem loops. São sempre as mesmas. Pra quem quiser saber o que eu digo é só lembrar da Headhunter do Front 242; saqueada pelo Bonde do Tigrão. As letras, sem exceção são de teor sexista, cantadas de modo aberto e com uma malemolência assassina. Lembro dos manos cheios de trejeitos que abordam pessoas no Largo Paysandu, tentando insistentemente empurrar uma mercadoria fresquinha. Lembro-me também do Paulo Francis no Manhattan Connection. Deve ser o calor.

As músicas parecem suscitar uma catarse erótica. Ao meu lado um garoto masturba a garotinha. Um outro se esfrega alucinadamente contra uma coroa com vagas a cada dois dentes. O volume das calças é sintomático. Perco o número das ereções visíveis. A testosterona escorre pelas paredes. Apoteótica e inesperadamente Tati entra em cena. "Ixxxxxxxxculaaaacho", grita ensandecida. Caos. Perto daquilo os Pistols de 76 pareceriam personagens de algum desenho da Disney.

Tati traz à tona um misto de amor e ódio. Feia, mas na moda, é a própria porraloca. Sua boca vocifera contra um grupo de moleques entre um e outro gole de cachaça. "Co’esses veados, sem condições", reclama. O clima realmente esquenta quando em Boladona, erra (sic), por duas vezes a letra. "Porra, cêis qué o que?", e completa: "eu sabia, paulista é foda. É tudo veado”. Estava armada a bomba. Dali em diante, Tati quer mais é que se danem os moleques e as molecas da "Paulicéia". Gesticula e ofende como uma SC70 numa troca de tiros na Rocinha. Entretanto a molecada não deixa por menos, aterrorizando a diva trash. Uma chuva de copos com mijo ou sei lá o que, chega ao palco. O bate boca é surreal. Hierarquia do crime: Heliópolis, Elba, Sapopemba. "Sou da CDD (Cidade de Deus) e filha da puta pra mim é poco", berra ao mesmo tempo em que arremessa, certeira, o conteúdo da garrafa contra seu público. E num grand finale o microfone sofre a histérica ação da funkeira demolidora de barracos. "Cabô essa porra de show do caralho".

Se voltou? Não, e a brochada foi geral. Depois do que se viu nos pouco mais de quinze minutos de "show", o baile mais parecia a matiné do Tênis Clube em 1954. Namoricos, não mais que isso. Tati foi embora, bebês indesejados não foram gerados, brigas não rolaram porque a vontade convergia num orgulho sem noção. E eu, eu permaneci vivo. Graças a Deus. Ou, naquela noite, graças à Tati.



Ao som de Dance & Shake Your Tambourine do UNIVERSAL ROBOT BAND

2 comentários:

Marcos Costa Melo disse...

Que "show" hein? Mas, o que você estava fazendo nele?!

abs

O SUJEITO POR DETRÁS DA MESA disse...

A versão oficial dá conta de que a prática do chamado JORNALISMO GONZO é um esporte adotado por Lucimário.

(Departamento Jurídico dos Colecionadores de Pecados Veniais)