sexta-feira, 4 de abril de 2008

QUEM TEM MEDO DE BRINCAR DE AMOR - Parte 2

Unhas. Sinto falta das minhas. Sem elas, fitas em plástico Bopp para abertura de embalagens não parecem ser assim, algo tão extraordinário. É uma conclusão. Obtida pela ponta dos dedos enquanto tento desnudar afoito uma caixa de Marlboro. Rodrigo vem até mim com seus braços marcados pelo alumínio do peitoril da janela onde estivera debruçado á procura de ar, enquanto suas mãos abraçam, uma lata de Coca-Cola.

Se pudesse dizer algo lógico e limpo com mais de cinco palavras, possivelmente eu diria: “veja as coisas por outro lado, et cetera e tal”. Isso porque eu falei em lógica e limpeza e não em primor filosófico. Sou um hardware ligado à ela sabe-se lá por qual cabo. Não me lembro ao certo como, mas o fato é que ao pensar em Marcella o que me ocorre instantaneamente é a imagem dos seus dedos soltos percorrendo as teclas da calculadora quase que instintivamente em busca dos valores correspondentes aos produtos de nossa lista de compras. Fruto do seu senso de organização. Eu finjindo observar distraidamente a data de validade impressa em uma grande e laranja tampa de maionese Hellmans enquanto na verdade organizava a realidade. Não sou auto-suficiente, eu admito. O que faz de ações insignificantes como amarrar o próprio tênis, ou partir o próprio bife, conquistas pra mim. Dessa forma, ela vale o símbolo de uma barra de chocolate ao leite achado sem querer na despensa em meio ao turbilhão de uma crise de hipoglicemia. Ou seja, preciso muito dela. Certamente, mais do que ela precisa de mim. Seus lábios grossos dispostos numa máscara sangüínea adorável. Suas sobrancelhas finas conferindo um certo aspecto ético a qualquer ato seu. O cabelo negro e brilhante na altura dos ombros remetendo ao vinil de All Mod Cons do The Jam. Seu colo, uma ofensa à todas as senhoras feias e católicas, desgarradas de seus maridos e a procura da oferta que fará de suas vidas algo do que se orgulhar. Minha Audrey Tautou. Com seus olhinhos puxados trazendo paz aos meus momentos de solidão irremediável. Discorrendo sobre a seção de cartas de amor da Reader’s Digest ou sobre como as curvas numa embalagem podem revolucionar o mundo.

Estávamos tão próximos. Separados por pouco mais que cinco ou seis tipos de pratos congelados. E agora meu coração está vazio. Sem aquela paixão concreta e inabalável. Algo como uma onda de calor pulsante que faz cócegas em minha garganta. Um misto de prazer e desconforto, como o sabor das pipocas Kettle Corn. Nada muito brando. E tudo o que eu mais quero é um beijo seu. Algo exótico e molhado como uma partida de badminton em Kuala Lampur. Ao seu lado sou uma estante em aço latonado procurando na gôndola freezer um pote de sorvete de nozes Hägen Daasz. Nozes. Maskell. Consistência e cremosidade.

Tento pensar em algo alegre, capaz de transformar a certeza da impossibilidade da reconquista numa questão suportável. Só o que me ocorre é uma série desconexa de músicas de Jens Lekman e a imagem muito nítida de um revólver 38 pertencente ao meu avô, com seu belo cabo em madre pérola coberto por um monte de cobertores dentro do guarda roupa.


ao som de Pocketful of Money do JENS LEKMAN

quinta-feira, 3 de abril de 2008

QUEM TEM MEDO DE BRINCAR DE AMOR - Parte 1

Seis da tarde é um territórios perigoso sob a chuva que faz do asfalto um espelho. Existem dois modos de envelhecer: o primeiro dignamente. O segundo, o que eu recomendo. Por isso mesmo ligo um cigarro, enquanto o tilintar dos copos me acalma. Marcella sempre foi um sonho e ainda que a falta de alguma carne quente e sólida dentro daquele corpo seja algo a lamentar; bem, você sabe: um Cock Stroker sempre será capaz de superar qualquer paspalho cagão vivendo da aprovação de um bando de amiguinhos punheteiros.

O fato é que, aqui estou eu. O menor homem do mundo. Um sujeito de enormes gengivas e uma nota de cinqüenta na carteira. Com as chaves precariamente dispostas num mosquetão preso às calças, levando uma vida de vírgulas e aindas. Um obstáculo embalado em jeans barato assistindo inerte ao estupro de uma garrafa de cerveja enquanto calcula com todas as letras a distância exata entre cada um dos seus fracassos. Os cotovelos fincados no balcão, o olhar vago. Como quem conta as pequenas sementes de um morango. Farto de qualquer questão maior que os pelos queimados saindo de suas narinas. Balbuciando palavras entrecortadas em quarenta e cinco rotações, como quem acaba de levar uma joelhada nos testículos.

Estou decidido a esquecê-la. Grito ao balconista por mais uma cerveja e posto a boca num quase sorriso. Acabo de perder uma linda e úmida boceta capaz de passar duas horas ao meu lado depositadas numa poltrona de cinema assistindo a mais um filme cool sobre amores impossíveis em algum lugar da Escandinávia. Ele, um loiro alto e de dentes imaculados com cerca de trinta anos. Um burocrata protestante conservador. Ela, uma menina de sardas num vôo desesperado pelos fiordes, numa busca incessante pela correspondência desse amor. Peço ao cara com um pano de prato no ombro uma caneta, com a qual rabisco rapidamente no guardanapo uma lista pessoal de catástrofes. Em ordem crescente: pão de forma colado no céu da boca, pentelhos presos nos dentes, polução noturna, câncer de esôfago e burocratas protestantes conservadores que alimentam falsas esperanças em garotas com sardas.

Minha decisão não pode esperar. É hora de esquecer tudo o que passou e as opções são: 1. procurar o banheiro masculino mais próximo e aguardar ser comido por um náufrago recém chegado à civilização e ávido por sexo, 2. entupir meu nariz engessado e 3. a morte. Penso na hipótese mais plausível e decido-me pelas três. Afinal de contas, de quem você gosta mais, do papai ou da mamãe? Quer saber, isso sempre foi um problema pra mim.


ao som de Creep do RADIOHEAD

domingo, 30 de março de 2008

JOGANDO VIDA DOS SONHOS

Vou afrouxar o cadarço dos meus tênis e descubro que há um nó impossível de ser desfeito no meu pé esquerdo. Moral da história: EU TENHO UM PÉ ESQUERDO.

Conversando com o Rodrigo entre garfadas numa pizza de rúcula e goles de guaraná, decidimos jogar Vidas dos Sonhos. A coisa é fácil. Consiste em pegar alguém que conhecemos e imaginar o que essa pessoa deve estar fazendo naquele exato instante. Palavras como cinema, Lester Bangs e sexo são as que mais aparecem. Hoje, por exemplo, foi a vez do Ricardo. O namorado da Lívia. Quer dizer, a própria Lívia tem uma vida bacana: um apartamento simpático a três quadras da avenida Paulista, grana pra comprar a Found, a Zupi e a Simples, além de sexo limpo com o cara que ama. Mas, o Ricardo: Gang of Four no Vancouver Commodore, (quando ainda nem se falava dos caras virem pro Brasil), três semanas no Thistle Marble Arch em Londres, tardes no Rijksmuseum de Amsterdã e sexo limpo com uma garota que o ama.

Vista pela ótica de Vidas dos Sonhos minha vida estaria entre os quatrocentos últimos nomes dos créditos finais de uma comédia albanesa sobre um padeiro gago durante o regime comunista. Mas, sempre existe um mas. O meu, não tem mais que um metro e vinte e cinco, quinze quilos e poucos e pequenos dentes. Está no alto da escada e sorri deliciosamente como quem diz: Bem, ai está você papai, e que bom que você veio. Pode ser só um palpite. Como quando apertamos os olhos contra o céu tentando estabelecer a probabilidade de chuva. Mas olhando aquelas bochechas enormes se distendendo num sorriso luminoso, não como pensar o contrário. O meu pequeno grande evento do dia: Rafaella.

Sim, eu estou babando. E meus posts têm desculpas sempre repetitivas pra falta de criatividade. Mas enfim, é de vida que eu falo. A minha vida. Que pode não ter garrafas de Perrier na geladeira, mas tem crianças com bocas e mãos sujas de chocolate prontas pra receber todo o meu amor sem impor qualquer condição. Enquanto for assim, não espere mesmo outra coisa de mim.


ao som de Guilt Is a Useless Emotion do NEW ORDER

sexta-feira, 28 de março de 2008

FOI NUM RISCA FACA QUE EU ME CONHECI

As instruções parecem saídas de um Manual de Instruções para os visitantes da Reserva Nacional dos Gorilas em Odzala, no Congo: nunca olhar diretamente nos olhos de um macho, evitar ficar próximo de qualquer fêmea a menos de cinco metros de um eventual parceiro e em hipótese alguma – ainda que sutilmente – tocar no corpo de qualquer indivíduo do grupo. Geraldo Campos de Macedo, um senhor bonachão na casa dos cinqüenta, repassa os alertas enquanto estaciona seu táxi em frente ao Tradição Danças. “Estou aqui desde 1986, quando isso aqui ainda chamava Forró do Pedrinho”, conta. Localizado na parte superior de uma loja de móveis e ao lado de uma igreja pentecostal, o “Pedrinho” teve sua fama assegurada por ter sido o primeiro espaço dedicado ao forró no ABC. “Já vi de tudo por aqui. Namoro, casamento e morte” Sem dúvida seu Geraldo sabe como usar as palavras, o que faz com que eu titubeie logo no primeiro degrau de uma escadaria enorme. Um segurança me faz um sinal entre o apressado e o grosseiro e assim, sou obrigado a deixar uma vida mais amena do lado de fora da casa.

O ritmo nascido no nordeste no começo do século XX, encontrou terreno fértil em São Bernardo do Campo no ABC paulista, cidade que após década de cinqüenta, poucos anos após sua emancipação, (ocorrida em 1 de janeiro de 1945), abriu suas pernas para uma leva de imigrantes que chegavam pra ocupar os postos de trabalho na construção de um parque industrial voltado para o que viria a ser tempos depois, o principal pólo automobilístico e moveleiro do País. Para a maioria, a chegada representava uma – ou talvez, a única chance de uma – luz no fim do túnel.

A primeira visão do lugar em si é tenebrosa. O único ponto de luz vem de uma pequena lâmpada vermelha localizada próxima ao palco. O som – se é que se pode chamar aquela sucessão acelerada de acordes desafinados e o burburinho, de som – é de dar medo. Ao meu lado um casal tenta em vão engatar uma conversa. Aos poucos meus olhos conseguem se adaptar à escuridão e meus ouvidos decodificam uma melodia: Tô Ligando Amor, uma versão com rachaduras nos pés e chapinha para A Little Respect do Erasure, reverbera pelas paredes cheias de anúncios sobre os próximos shows da casa. Todos, sem exceção, parecem se divertir apesar do cheiro de suor transcender os limites do aceitável para qualquer nariz normal. Os sorrisos se multiplicam em um sem número de dentições incompletas. Essa parece ser a minha deixa. No melhor estilo “vocês-vem-sempre-aqui?”, me aproximo de uma garota com um grande copo plástico abastecido com cerveja. Minutos depois, entre perguntas e respostas gritadas ao pé do ouvido sei de boa parte de sua vida.

Paraibana de Santana dos Garrotes, Rosângela é freqüentadora do “salão”, como costuma se referir ao “Pedrinho”, desde os dezesseis. Foi ali que, em meio ao compasso de dois pra lá e dois pra cá, conheceu seu primeiro marido, Antônio, pai de seus dois primeiros filhos. Hoje com 32 anos, tem em sua conta um saldo de dois casamentos, quatro filhos e um neto. “Aqui conheço todo mundo. Sei quem é bom e quem não é”, dispara ao mesmo tempo em que passa a mão no ar pra mostrar que todo mundo é todo mundo, mesmo. De fato, Rosângela é mesmo, muito conhecida por ali. Ao lado dela fui convidado – às vezes a contragosto – a cumprimentar muita gente. Ao nos deixar, cada pessoa recebia dela um carimbo em forma de adjetivo. “Essa é rapariga. Esse é bom rapaz. Esse é ladrão. Gosto de dançar com esse. Essa me deve dinheiro”.

Durante o festival de beijos e apertos de mão, fui apresentado à Maria da Conceição Rosa Bispo, ou a Maria do Foguinho. “Você deu sorte. Não é sempre que eu subo pra dançar”, conta Maria, ao mesmo tempo em que se apresenta e alimenta minha curiosidade. Maria do Foguinho recebeu essa alcunha desde que montou o seu negócio – uma churrasqueira de onde brotam colunas espessas de fumaça – às portas do “Pedrinho”, em meados da década passada. “A pessoa que vem no ‘Pedrinho’ tem que comer pelo menos um espetinho meu”. Senão? “Senão, não pode falar que veio, ué”. Essa condição me assustou e resolvi escapar enquanto ainda podia, inventando uma vontade incontrolável e repentina de ir ao banheiro. Não é preciso dizer que não havia tijolinhos dourados no caminho que levava ao sanitário. Nem pássaros. Nem flores. Mas, de certa forma, havia mais luz do que no restante do salão; o que me permitiu perceber que o lugar era na verdade um cubículo ao final de um longo corredor com as paredes marcadas pela umidade, o chão recoberto por lajotas geladas de ardósia negra e recheado pelo barulho dos bacilos de Koch surfando as ondas de ar vindas da tubulação e pelo cheiro enjoativo de mijo datando à gerações. Nada de cabines, com uma privada cada. Todo produto dos litros de cerveja consumidos era despejado numa vala comum, na frente da qual você tinha que se posicionar cuidadosamente para que seu pé não arremetesse buraco adentro, e onde você teria que dividir o espaço com um sujeito brutal de cada lado lançando jatos de urina que mais pareciam tiros de raio laser.

Com algum sacrifício duas ou três gotas de urina brotaram da ponta do meu pinto. Era como se uma missão de guerra acabasse de ser cumprida. E vamos combinar, numa situação dessas quem ficaria ali pra saber se a coisa foi convincente ou não? Fiz todo o caminho de volta andando a passos rápidos, como se, de algum modo, tivesse memorizado cada centímetro do percurso. Logo estava de volta à pista onde Rosângela ao lado de um negro imenso me recebeu.“Este é o Laurivan”. Laurivan era um sujeito daqueles que respira com a boca entreaberta, o que confere um certo ar boçal a tudo o que ele venha a realizar. Fui apresentado como “o moço da revista” o que pra ele soou meio afrescalhado. Quando sua mão subiu, me senti em meio a um assalto. Seus dedos eram como o cano de uma arma de fogo. Apontavam pra mim, ameaçadores e aguardando algum peso proveniente do meu cumprimento. Fiz um esforço sobrenatural pra ao mesmo tempo em que apertasse aquela mão, (repleta de sulcos abertos pela ação cáustica do cimento de alguma obra onde Laurivan repousava sua colher de pedreiro e assobiava, como um maldito e inumano poço de testosterona, para colegiais indefesas se protegendo com seus fichários), ao mesmo tempo pudesse parecer o mais viril e natural possível.

Quando era menino, na fila da Montanha Russa, eu tentava calcular o tempo da queda do carrinho pela descida mais vertical. Eu estipulava poucos segundos e isso sempre me fazia tomar coragem e fixar minha bunda magra de adolescente no assento de couro rasgado daquela navezinha de fibra de vidro multicolorida. Entretanto, sempre a coisa se desenrolava de um jeito contrário a tudo aquilo que eu havia desejado. Inexplicavelmente, havia um paradoxo temporal entre o momento em que eu estava fora e aquele onde eu me encontrava a bordo. Segurando a mão daquele homem, torcendo pra que meus tendões suportassem a pressão, eu era novamente um adolescente bobo mascando chiclete e mentindo pra mim mesmo sobre como toda aquela história ia passar tão rapidamente quanto eu calculara. E antes mesmo que eu pudesse me recuperar da tensão fornecida por um momento como aquele, Laurivan, com um grunhido, me ofereceu um copo cheio de um líquido escuro e fedido. Eu nunca havia repetido uma volta na Montanha Russa num mesmo dia. E não seria aquela, a primeira vez.

A coisa com o namorado da moça de Santana dos Garrotes é que era evidente que eu não era o tipo de cara forte o suficiente pra entrar de cabeça em experiências como aquela. Eu havia tido um contato intenso com um nicho que não era o meu. E isso não tinha nada a ver com ser melhor ou pior do que a turma do “Pedrinho”. Eu provavelmente poderia, enfrentar os mesmos questionamentos sobre o que comer sem muita grana, ou como eu poderia fazer pra que a minha vida fosse de alguma maneira mais cômoda e não tão sacrificante. Mas o que pegava, era que eu havia invadido um espaço que não me pertencia. Eu ainda era capaz de conjugar sem constrangimento, verbos que Rosângela, Laurivan e Maria do Foguinho, sequer sabiam existir, e não porque quisessem que fosse assim. Não se tratava de uma opção. Acho, que se trata mais, de não ter como escolher. E quando com um sorriso, não pude aceitar o ultimo teste de masculinidade imposto pelo gigante Laurivan, dizendo que tinha mesmo que ir e por isso não podia aceitar encostar a boca num copo com alguma substância desconhecida que só um bravo sorveria; ali naquele momento eu soube mais do que nunca que o caminho de volta seria tranqüilo, pois cada lado festejou sua vitória. Laurivan acompanhado de sua amada e eu acompanhado de alguém sentimental e razoável como eu jamais suspeitara que eu podia ser.


ao som de A Little Respect do ERASURE

quinta-feira, 27 de março de 2008

DEBAIXO DOS JORNAIS VELHOS

O marcador de tempo do meu Real Player nem bem alcançou a metade dos três minutos e cinquenta e seis segundos de Mind the Void dos suiços do Love Motel e eu já sei o que vai acontecer quando a última batida chegar aos meus ouvidos: vou repetir a experiência. É o que acontece quando estou encantado com alguma coisa. E quer saber, talvez, eu seja uma das últimas pessoas que ainda consiga se encantar com uma série de coisas. Música é uma delas.

Se você é da turma conhece essa história. Mas, eu acho que contá-la faz todo sentido agora que eu vou falar como toda essa coisa de música começou na minha vida.

Quando menino, eu estudava a menos de três quarteirões da minha casa. Na mesma rua. Era uma caminhada curta de casa para a escola, feita na maioria das vezes, com os amigos combinando uma partida de videogame ou estimulando alguma briga. Eu tinha uma mochila Sansonite incrivelmente pesada pelo volume de material desnecessário que eu levava para a escola. Eu sempre imaginava que cedo ou tarde uma emergência faria com que toda aquela minha precaução seria digna de elogios. Havia de tudo o que se possa imaginar ali, em cada um dos duzentos compartimentos da minha mochila: de réguas de quarenta centímetros a material de higiene, (com direito a dois rolos de papel higiênico de uso pessoal e intransferível).

Eu me orgulhava de ser um projeto de escoteiro em calças de elanca azul-marinha, até que um dia o pior aconteceu. Eu me arrastava como uma tartaruga com um gigantesco casco colorido de náilon e borracha sobre o piso encerado do corredor que levava até a sala da quarta série, quando Lizandra passou por mim desprovida de qualquer outro objeto que não fosse um caderno universitário de espiral e um estojo. Seus passos eram tão leves que pareciam não pertencer à realidade concreta de uma escola ginasial com sua fauna caracterizada por alunos correndo, se empurrando e gritando. Ela estava em algum outro patamar de existência e era impossível não parar diante da santidade daquela figura de cabelos louros se movendo como um pêndulo hipnótico.

Naquela tarde as aulas se arrastaram para além do habitual. Em parte porque havia o temor de uma prova surpresa de matemática motivada pelo mau comportamento da classe, mas, sobretudo, pela imagem de Lizandra destituída de sua mochila e ainda assim feliz e maravilhosa. Como uma das meninas mais populares da escola, Lizandra era uma lançadora de tendências. Logo, por sua influência, grande parte das mochilas foi abandonada e o barulho trepidante das folhas sendo arrancadas das espirais dos cadernos passou a fazer parte da vida de todos. Após alguma resistência sepultei a minha mochila sob uma pilha de jornais velhos no quartinho de bagunças e durante algum tempo eu me sentia culpado por seguir o comportamento de uma garota que apesar de ser minha vizinha há pelo menos quatro anos, provavelmente jamais havia reparado na minha existência.

Quando, depois de um tempo, já convencido de que de qualquer modo os riscos de um desvio irreversível na coluna haviam diminuído consideravelmente, Lizandra foi responsável por mais uma revolução na minha vida.

Eu voltava pra casa depois da aula com parte do caderno depositado sobre o antebraço e parte apoiada na cintura. Era um jeito charmoso de se fazer a coisa. Caminhava a passos rápidos quando fui tomado de assalto pela voz de Lizandra me chamando a uns poucos metros atrás. Relutei em acreditar que aquilo fosse possível, entretanto uma nova chamada sua não me deixou dúvidas. Ela se esforçava em diminuir a distância entre nós, ao mesmo tempo em que tentava me mostrar algo em sua mão: uma fita cassete TDK com os nomes das canções marcados numa pequena folha sob o acrílico da caixa.

- Pra você – disse sem maiores explicações. E partiu tomando a dianteira.

Ao chegar em casa tive acesso aos cinco segundos mais longos de toda a minha vida, entre a tecla play apertada e o começo da fita. Aos poucos uma música começou a se delinear, depois uma voz grave que arrancava minha inocência à força e me arremessava sem qualquer cuidado até um mundo novo. Um mundo com sons que me obrigavam a levar a língua numa viagem sem escalas até os dentes e a apertar os olhos. A música era Love Will Tear Us Apart de um grupo, (naquele tempo, bandas ainda eram grupos), chamado Joy Division. Talvez, um mundo mais triste e com preocupações mais sérias do que apenas mochilas ou cadernos, mas ainda assim um mundo novo.

Provavelmente vocês também tenham as suas histórias envolvendo música. Provavelmente, se lembrem exatamente quando e onde tudo aconteceu. Talvez, suas histórias tenham alguns aspectos escondidos também. Mas tudo o que eu sei com certeza, é que, de certo modo, a música tem um papel fundamental na minha vida. Nem que seja pra servir como pretexto para um post fincado num dia vazio.


ao som de Mind the Void do LOVE MOTEL

quarta-feira, 26 de março de 2008

TIRANDO OS PÉS DO CHÃO

Está certo, vocês provavelmente nunca ouviram falar de Eternos Heróis (Mickybo & Me). Quase ninguém ouviu. Não se trata de um arrasa quarteirão, menos ainda de um filme com enredo surpreendente, ou do tipo que você tem que cavar muito para sacar que debaixo de algumas camadas habita a mensagem que mudará a sua vida. Certamente você não conseguiria lotar uma Kombi, caso decidisse juntar todos as pessoas que dedicaram algum tempo - e dinheiro - sentados em poltronas de cinema para assistir às aventuras de Mickybo Butch Cassidy (John Joseph McNeill) e Jonjo Sundance Kid (Niall Wright). Então, por que cargas d'água meus olhos brilharam quando do fundo de uma montanha de DVDs em liquidação, emergiu aquela caixa com os dois garotos na capa?

Rodado em 2003, Eternos Heróis quebra a vidraça do adulto-dono-da-situação expondo o lugar para onde cada um de nós gostaria de retornar sempre que possível: a inocência. Um território percorrido por todos, a cada subida de gangorra ou descida de balanço em uma Belfast dividida entre católicos e protestantes. Pode nem ser um tema novo - como de fato não é, mas o mérito maior de Eternos Heróis é justamente não ligar a mínima para isso. O que importa é aproveitar o sabor das jujubas, sem se preocupar com as cáries. Seria muito, mas há ainda a bela fotografia, a interpretação na medida dos garotos, a grandiosa trilha que inclui Summertime de Gershwin na voz de Billy Stewart e I'll Tell Me Ma de Sinead O'Connor, (que a propósito não foi excomungada pelo Papa por cantar apenas Nothing Compares To You).

Sonhos só podem existir, porque o mundo real existe. Ou como nos mostra o curto diálogo entre uma mãe e seu filho, logo na primeira cena do filme: "Tire os pés do chão". Para o bem ou para o mal.



ao som de I Defy da JOAN AS POLICE WOMAN

terça-feira, 25 de março de 2008

BARULHO CONTRACEPTIVO

Sabadão, quinze pras onze. O espetáculo é amedrontador. Duas mil pessoas se acotovelam do lado de fora na esperança de uma entrada para as pregações nada ortodoxas de Tatiana dos Santos Lourenço, ou se preferir só Tati, a mulher que quebra barracos. Uma pergunta feita por um amigo me toma de assalto. "Até quando poderemos ser chamados jovens?” A resposta parece estar na minha frente. Ali seria o fim. É evidente que não faço parte do espetáculo. Sou como Richard Dreyfuss em Contatos Imediatos do Terceiro Grau. Jeans colado, camiseta dos Stones, adidas. Sim, certamente não haverá amanhã. Mas, desistir, não mesmo.

Com a demora no andamento da fila, o jeito é alternar sistematicamente minhas pernas já doloridas no apoio de um corpo cansado. Tati é o pior do mainstream brasuca, o que sem dúvida a torna digna de apreciação. Freak Show funkeiro pra periferia pirar e boyzinho curioso travar de medo. Decido prosseguir, contrariando meus próprios prognósticos. O movimento é impressionante. Os ônibus cospem, em intervalos de cinco minutos uma turba de garotos e garotas a fim de um pouco de diversão em suas vidas feias. Estou quase lá. Conto quarenta e seis cabeças à minha frente. Calculo o tempo, dividindo-as pelos dois guichês que trabalham freneticamente. Dez pratas pelo grotesco. Não reclamo. Meu led está aceso acusando o foda-se ligado.

Ao entrar levo um susto. Penso numa dessas estimativas policiais para grandes eventos: seis mil pessoas; mais que isso. Todos num galpão onde mil já ficariam claustrofobicamente confinados. Não há escolha entre ir e vir. O que se tem a fazer é acalmar os nervos sem afrouxar os músculos. Lançar-se na deriva por entre regatas de onde brotam sovacos cabeludos e cabelos com litros de creme de alisamento, parece ser a melhor opção. A tensão da espera acirra os ânimos. Dois meninos disputam as ancas de uma menina através de um jogo de ombradas. Tento pensar rapidamente numa oração. Tsc, tsc. Nunca me lembro das especificações. Santo das causas impossíveis, Santo da última hora, dos devedores, dos idiotas que não deveriam estar em lugar como aquele... Clamo a Deus, afinal.

O clima esquenta quando o DJ começa o que ele chama maratona funk. Uma sucessão não planejada de músicas gritadas por algum moleque de alguma comunidade onde, um dia, a cidade já recebeu o adjetivo de Maravilhosa. As bases são de EBM, só que remexidas de um modo primário, quase sem loops. São sempre as mesmas. Pra quem quiser saber o que eu digo é só lembrar da Headhunter do Front 242; saqueada pelo Bonde do Tigrão. As letras, sem exceção são de teor sexista, cantadas de modo aberto e com uma malemolência assassina. Lembro dos manos cheios de trejeitos que abordam pessoas no Largo Paysandu, tentando insistentemente empurrar uma mercadoria fresquinha. Lembro-me também do Paulo Francis no Manhattan Connection. Deve ser o calor.

As músicas parecem suscitar uma catarse erótica. Ao meu lado um garoto masturba a garotinha. Um outro se esfrega alucinadamente contra uma coroa com vagas a cada dois dentes. O volume das calças é sintomático. Perco o número das ereções visíveis. A testosterona escorre pelas paredes. Apoteótica e inesperadamente Tati entra em cena. "Ixxxxxxxxculaaaacho", grita ensandecida. Caos. Perto daquilo os Pistols de 76 pareceriam personagens de algum desenho da Disney.

Tati traz à tona um misto de amor e ódio. Feia, mas na moda, é a própria porraloca. Sua boca vocifera contra um grupo de moleques entre um e outro gole de cachaça. "Co’esses veados, sem condições", reclama. O clima realmente esquenta quando em Boladona, erra (sic), por duas vezes a letra. "Porra, cêis qué o que?", e completa: "eu sabia, paulista é foda. É tudo veado”. Estava armada a bomba. Dali em diante, Tati quer mais é que se danem os moleques e as molecas da "Paulicéia". Gesticula e ofende como uma SC70 numa troca de tiros na Rocinha. Entretanto a molecada não deixa por menos, aterrorizando a diva trash. Uma chuva de copos com mijo ou sei lá o que, chega ao palco. O bate boca é surreal. Hierarquia do crime: Heliópolis, Elba, Sapopemba. "Sou da CDD (Cidade de Deus) e filha da puta pra mim é poco", berra ao mesmo tempo em que arremessa, certeira, o conteúdo da garrafa contra seu público. E num grand finale o microfone sofre a histérica ação da funkeira demolidora de barracos. "Cabô essa porra de show do caralho".

Se voltou? Não, e a brochada foi geral. Depois do que se viu nos pouco mais de quinze minutos de "show", o baile mais parecia a matiné do Tênis Clube em 1954. Namoricos, não mais que isso. Tati foi embora, bebês indesejados não foram gerados, brigas não rolaram porque a vontade convergia num orgulho sem noção. E eu, eu permaneci vivo. Graças a Deus. Ou, naquela noite, graças à Tati.



Ao som de Dance & Shake Your Tambourine do UNIVERSAL ROBOT BAND