quinta-feira, 27 de março de 2008

DEBAIXO DOS JORNAIS VELHOS

O marcador de tempo do meu Real Player nem bem alcançou a metade dos três minutos e cinquenta e seis segundos de Mind the Void dos suiços do Love Motel e eu já sei o que vai acontecer quando a última batida chegar aos meus ouvidos: vou repetir a experiência. É o que acontece quando estou encantado com alguma coisa. E quer saber, talvez, eu seja uma das últimas pessoas que ainda consiga se encantar com uma série de coisas. Música é uma delas.

Se você é da turma conhece essa história. Mas, eu acho que contá-la faz todo sentido agora que eu vou falar como toda essa coisa de música começou na minha vida.

Quando menino, eu estudava a menos de três quarteirões da minha casa. Na mesma rua. Era uma caminhada curta de casa para a escola, feita na maioria das vezes, com os amigos combinando uma partida de videogame ou estimulando alguma briga. Eu tinha uma mochila Sansonite incrivelmente pesada pelo volume de material desnecessário que eu levava para a escola. Eu sempre imaginava que cedo ou tarde uma emergência faria com que toda aquela minha precaução seria digna de elogios. Havia de tudo o que se possa imaginar ali, em cada um dos duzentos compartimentos da minha mochila: de réguas de quarenta centímetros a material de higiene, (com direito a dois rolos de papel higiênico de uso pessoal e intransferível).

Eu me orgulhava de ser um projeto de escoteiro em calças de elanca azul-marinha, até que um dia o pior aconteceu. Eu me arrastava como uma tartaruga com um gigantesco casco colorido de náilon e borracha sobre o piso encerado do corredor que levava até a sala da quarta série, quando Lizandra passou por mim desprovida de qualquer outro objeto que não fosse um caderno universitário de espiral e um estojo. Seus passos eram tão leves que pareciam não pertencer à realidade concreta de uma escola ginasial com sua fauna caracterizada por alunos correndo, se empurrando e gritando. Ela estava em algum outro patamar de existência e era impossível não parar diante da santidade daquela figura de cabelos louros se movendo como um pêndulo hipnótico.

Naquela tarde as aulas se arrastaram para além do habitual. Em parte porque havia o temor de uma prova surpresa de matemática motivada pelo mau comportamento da classe, mas, sobretudo, pela imagem de Lizandra destituída de sua mochila e ainda assim feliz e maravilhosa. Como uma das meninas mais populares da escola, Lizandra era uma lançadora de tendências. Logo, por sua influência, grande parte das mochilas foi abandonada e o barulho trepidante das folhas sendo arrancadas das espirais dos cadernos passou a fazer parte da vida de todos. Após alguma resistência sepultei a minha mochila sob uma pilha de jornais velhos no quartinho de bagunças e durante algum tempo eu me sentia culpado por seguir o comportamento de uma garota que apesar de ser minha vizinha há pelo menos quatro anos, provavelmente jamais havia reparado na minha existência.

Quando, depois de um tempo, já convencido de que de qualquer modo os riscos de um desvio irreversível na coluna haviam diminuído consideravelmente, Lizandra foi responsável por mais uma revolução na minha vida.

Eu voltava pra casa depois da aula com parte do caderno depositado sobre o antebraço e parte apoiada na cintura. Era um jeito charmoso de se fazer a coisa. Caminhava a passos rápidos quando fui tomado de assalto pela voz de Lizandra me chamando a uns poucos metros atrás. Relutei em acreditar que aquilo fosse possível, entretanto uma nova chamada sua não me deixou dúvidas. Ela se esforçava em diminuir a distância entre nós, ao mesmo tempo em que tentava me mostrar algo em sua mão: uma fita cassete TDK com os nomes das canções marcados numa pequena folha sob o acrílico da caixa.

- Pra você – disse sem maiores explicações. E partiu tomando a dianteira.

Ao chegar em casa tive acesso aos cinco segundos mais longos de toda a minha vida, entre a tecla play apertada e o começo da fita. Aos poucos uma música começou a se delinear, depois uma voz grave que arrancava minha inocência à força e me arremessava sem qualquer cuidado até um mundo novo. Um mundo com sons que me obrigavam a levar a língua numa viagem sem escalas até os dentes e a apertar os olhos. A música era Love Will Tear Us Apart de um grupo, (naquele tempo, bandas ainda eram grupos), chamado Joy Division. Talvez, um mundo mais triste e com preocupações mais sérias do que apenas mochilas ou cadernos, mas ainda assim um mundo novo.

Provavelmente vocês também tenham as suas histórias envolvendo música. Provavelmente, se lembrem exatamente quando e onde tudo aconteceu. Talvez, suas histórias tenham alguns aspectos escondidos também. Mas tudo o que eu sei com certeza, é que, de certo modo, a música tem um papel fundamental na minha vida. Nem que seja pra servir como pretexto para um post fincado num dia vazio.


ao som de Mind the Void do LOVE MOTEL

3 comentários:

Anônimo disse...

Caramba... adorei seu blog.. perfeito!

Fiquei muito feliz com seu comentário lá no meu! Nem sei o q dizer.. fiquei emocionada!!!

Beijos e te espero lá acompanhando!

Anônimo disse...

ótimo, fico mais feliz ainda! vou te favoritar para nos falarmos sempre! beijos

marcospaulo; disse...

Eu também ainda consigo me encantar com uma série de coisas, principalmente, com as mais simples possíveis. Música é remédio, música é massagem ao ser. CERTEZA!

Eu tenho minhas histórias com músicas, mas aposto que não são tão emocionantes com as suas e minhas experiências musicais infantis, era um caos. Horrivel. Haha

Seu post tá muito bom. Eu gosto de ler, e ler um post "fincado num dia vazio" tão bom assim me faz feliz. Parabéns!